Uma viagem de camião entre o Nepal e a capital da Índia
On the road
Doze dias de camião com companheiros de viagem de cinco nacionalidades pode equivaler aos doze trabalhos de Hércules. Espécie de reality show de beira de estrada, vista sob este prisma, a Incredible Índia ainda fica mais incrível. Ou dito de forma menos diplomática, ainda mais surreal.
Esta é uma cidade de fim de linha. Foi fim de linha para mercadores extenuados durante séculos. Foi fim de linha para o não menos esgotado sonho hippy em busca de refúgio. E é aqui que o refúgio de Buda é concedido a milhares de peregrinos que querem sair da linha e entrar na via do meio do Nirvana. Para nós, no entanto, Katmandu não é fim, não é meio, mas o princípio de um segmento de linha, tingido a rodado de camião, que terá o seu epílogo geométrico em Nova Delhi. Por outras palavras, mais duas colheres desta Momo Soap e vamos recolher-nos para madrugar amanhã, com mais 17 companheiros de viagem que acábamos de conhecer, dando assim início a esta aventura encomendada há três meses na Internet no site da Dragoman. E que também será um on the road com guião escrito em duas línguas, já que somos quatro portugueses e duas brasileiras a travar argumentos com americanos, ingleses e australianos. Ou, visto por outro ângulo, seis mulheres e 12 homens. Uma guerra dos sexos desigual, mas também ninguém disse que o mundo era justo.
Chitwan National Park, Nepal
Cafés expressos para pôr cobro aos bocejos é a receita da ala portuguesa. São seis da manhã e está na hora de arrancar. O pequeno percurso até ao camião Dragoman é feito numa mini-van. Com as mochilas já arrumadas, agora é prego a fundo para tentar chegar à estrada principal antes que o tráfego se intensifique. O objectivo inicial era chegar ao Chitwan National Park em menos de 14 horas, mas hoje vamos ficar nas proximidades deste santuário natural, após um trajecto previsto de seis horas. A vista é deslumbrante. E não me refiro aos Himalaias, que isso não sendo mentira acabaria por tornar-se redundante, mas ao rosto de porcelana fina e aos cabelos de oiro reluzente de Helen, uma das três britânicas que integram a excursão. Parece que Karl, um autraliano que se veste na mesma loja do Paul Hogan (ainda se lembram do Crocodile Dundee?), também decidiu privilegiar a beleza interior aqui do camião e optou por sentar-se ao lado da inglesa. Pronto, é melhor concentrar-me no Evereste e esperar por melhor oportunidade. A estrada é sinuosa e estreita, avançando por abismos de cortar a respiração. A atenção detém-se entre a imponência dos picos gelados e fundo dos vales onde se avistam algumas povoações. Há também pequenas cidades e lugarejos que se cruzam na nossa rota de viagem. Numa delas um casamento obriga o camião a abrandar a marcha e ia jurar que vi saris capazes de pôr em causa a lógica de cores disponível no espectro electromagnético visível a olho nu. Mais meia dúzia de povoações coroadas lá em cima com o brilho gelado dos Himalaias e chegamos ao nosso destino, o Hotel Lodge Rhino. À nossa espera um jipe que nos conduz para o Elephant Breeding, santuário natural e centro de formação para técnicos e voluntários que aqui vêm para cuidar destes animais. Todos alimentamos os elefantes-bebé, mas a brasileira Carol e a australiana Maggie são as que revelam maiores dotes maternais, o que dá logo azo a piadas na ala masculina. Regressamos ao lodge e antes de jantar ainda há tempo de pôr a conversa em dia, ou seja, é agora oportunidade de ouro para falar com Helen e recuperar pontos perdidos em relação ao “Paul Hogan”.
Safari no Parque Nacional Chitwan, Nepal
Mais um começo de dia madrugador. A alvorada estava marcada para as sete, mas, previsivelmente, só a ala anglófona da expedição mostra credenciais de pontualidade britânica. Hoje, espera-nos um safari no Parque Nacional Chitwan, que arranca com uma viagem de canoa . O guia desfia-nos episódios do anedotário local sobre crocodilos, mas o mais próximo que estivemos de ver um foi mesmo a pele do colete ali do companheiro australiano. O ponto alto do dia é o passeio de elefante, que nos conduz através de um serpenteado de trilhas e matagais. Finalmente, avistamos um rinocerante fêmea com um filhote, o momento que esperávamos à David Attenborough. Entretanto, o guia conta-nos que os animais do parque já estão acostumados à presença humana, o que faz do pretérito momento um pouco menos selvagem do que as emocionantes aventuras do explorador inglês. Não faz mal, pode ser menos intenso, mas é mais seguro. Afinal, ainda temos vários dias pela frente até chegar a Delhi.
Sunauli na Índia
Abandonamos Chitwan rumo ao sul do Nepal. Na cidade fronteiriça de Sunauli, há um processo moroso e burocrático à nossa espera. Um dos oficiais diz-nos que três horas não é nada mau, tendo em conta que o camião tem registo britânico e transporta pessoas de cinco países diferentes. Sunauli é uma cidade despida de atractivos dignos de monta. Por isso, encontrar um restaurante com boa comida tradicional foi o objectivo a que nos propusemos. A média de refeições andava entre as 20 e 25 rupias e a conta ainda incluiu algumas cervejas de litro que nos acompanharam até ao hotel e ajudaram a amainar os 40 º graus nocturnos.
Varanasi, Índia
Agora sim, começam a levantar-se os véus sobre a “incredible India”. E tão incrível como a cultura milenar e sagrada da Índia é o seu trânsito caótico e desenfreado. E só mesmo a existência de um Deus benevolente pode explicar a não existência de maiores acidentes rodoviários. Depois de uma paragem em Somasas para um almoço farto, seguimos estrada fora. Do lado de lá da janela do autocarro há um permanente vaivém de objectos cénicos, como se o palco de Maya - designação dos filósofos hindus para o jogo ilusório da vida - estivesse sempre a rodar. Há planícies a perder de vista, quintas agrícolas, barracas de mendigos, aldeias, cidades e muitos rostos, milhares deles. E é já com o sol posto que chegamos à lendária Varanasi. À entrada da cidade, um jovem salta em andamento para o camião e vai dando as instruções necessárias para chegar ao hotel. Depois de uma noite bem dormida, acordamos cedo e apanhamos um riquexó para o mítico Ganges. Não é apenas um rio, mas a divindade manifestada a quem os populares prestam culto diário. Varanasi é conhecida como a “cidade que ilumina os espíritos” e é por isso que aqui chegam dezenas de pessoas diariamente para fazer a passagem para o outro lado do rio da vida. Na cultura indiana a morte está muito longe de ser o fim e se isso acontecer em Varanasi e na companhia do Ganges é uma bênção dos céus. E é lá no alto do céu que o astro-rei, outro dos símbolos tutelares da filosofia hindu, escuta as orações e os mantras, ditos nas mais refinadas posturas yóguicas dos peregrinos. Suryanamaskar, ou Saudação ao Sol, é o ritual diário dos hindus, hoje já convertido num dos postais ilustrados mais famosos da “Incredible India”. Do sagrado saltámos abruptamente para o profano, pois a organização tinha-nos reservado duas horas para a visita a uma fábrica de seda. Os vendedores recebem-nos com um sorriso Bollywood e não há repetição mantrica do nome Cristiano Ronaldo que lhes vá garantir umas rupias-extra
Varanasi/ Panna National Park
Não há ninguém que tenha ficado indiferente a Varanasi, pois no dia seguinte as conversas perpetuam as imagens fortes da cidade. Passamos em Madha Pradesh e a paisagem muda radicalmente. A poeira assenta e o verde da vegetação intensifica-se. Chegámos ao Rio Ken Lodge, perto de Panna National Park após 450 duros e longos quilómetros. Apesar do recolher não ser obrigatório, toda a gente concordou em dormir mais cedo após uma viagem tão desgastante. Ainda não acabámos o primeiro café do dia e já temos material suficiente para escrever um anedotário sexual. É que hoje todas piadas acabam em cama, ou melhor, em Kama...Sutra, o famoso tratado erótico indiano que um dia se tornou best-seller mundial em bombas de gasolina e afins. Khajuraho é uma espécie de foto-novela a céu aberto das principais cenas do Kama-Sutra. Construídos em arenito, estes imponentes templos, mandados construir pela dinastia Chandela, estão recheados de imagens para bolinha no canto superior direito. Só que em vez de actrizes porno, as protagonistas deste filme são algumas das principais deusas do panteão hindu.
Penna National Park/Orchha
Hoje, iniciámos um novo capítulo gastronómico nesta viagem. Nos próximos dias, todos os membros da expedição terão que mostrar os seus dotes culinários, uma vez que vamos acampar no Penna National Park. E como ninguém quer fazer má figura já começámos jos ensaios gourmet. Arrancámos nos jipes as cinco da manhã e depois de quatro horas de condução ininterrupta à procura de animais selvagens, dois elefantes e um tigre fazem-nos ganhar o dia. Toda a gente ficou com a sua fotografia à National Geographic, por isso boa disposição reina no grupo. Já nos habiuámos às longas jornadas de condução e por isso as quatro horas de viagem até Orchha pareceram mais pequenas. Ainda que os acampamentos nocturnos sejam uma das imagens de marca da Dragoman, nem todos os companheiros de viagem parecem efusivos com a experiência. Hoje, calha-me na rifa a confecção do jantar. E ainda que não seja, infelizmente, uma refeição a dois, é altura de caprichar para impressionar a ala feminina, ou seja, a Helen. Vou abusar das especiarias indianas e acreditar que um bom karma vai fazer o resto. E a julgar pelo número de indianos que já se aproximaram após o primeiro refogado, tudo indica que estou no bom caminho.
Palácios de Orchha
A alvorada tem hora marcada às 6h30 da manhã. Um grupo de homens com uniformes verdes passou a noite debaixo de uma árvore guardando o nosso acampamento. Achamos que são funcionários do estado que têm como missão proteger os turistas. O nosso guia acaba de chegar com um os riquexós que nos irão conduzir aos palácios de Orchha. Vagueamos pelo complexo arquitectónico da cidade e acabamos no centro de uma praça animada, onde um edifício com uma cúpula rosa-ouro se destaca de forma imponente. É o Templo de Rama, o único local em toda a Índia em que esta divindade é adorada como um rei.
Taj Mahal
Chegámos a Agra, conhecida sobretudo por causa do Taj Mahal. É um clássico e toda a gente está entusiasmada com a ideia de o visitar, mas confesso que parte do meu interesse se evaporou depois de um yogui me ter contado que, segundo um boato secular, o imperador mandava cortar os dedos a vários trabalhadores como forma de imortalizar ainda mais a sua épica história de amor. Claro que o mais provável é não passar de um mito urbano, mas a verdade que acabei por ouvir esta tese da boca de mais uns quantos indianos. Pelo sim pelo não, e porque não gosto de histórias de amor que lembrem filmes de terror, enquanto o grupo seguiu para o Taj Mahal eu travei amizade com um casal indiano, o Ali e a Indhira, que me serviram principescamente uma refeição magistral no terraço da sua casa. Finalmente, tive direito a um café que sabia realmente a café, doces fritos, paneer naan, batatas picantes e umas torradas deliciosas. Depois do estômago aconchegado, a sobremesa: a modorrenta sesta de final de tarde neste terraço com vista panorâmica sobre Agra. Encontro os meus companheiros de viagem umas horas mais tarde e toda a gente estranha a minha falta de apetite. É que, desde que passámos a cozinhar, a viagem tornou-se uma espécie de road reality show de culinária onde os cozinheiros de serviço têm de passar pelo crivo da exigente crítica do júri.
Jaipur
Estamos na capital do Rajastão. A primeira paragem obrigatória é no Observatório Jantar Mantar, cuja construção foi ordenada no início do século 18 pelo Maharaja Jai Singh II, mecenas das artes e o equivalente a um homem da Renascença. Se tivesse vivido na Europa...e na Renascença. De todas as construções avermelhadas da cidade, a mais impressionante é a fachada do Hawa Majal, o Palácio dos Ventos, com as suas varandas em treliças de filigrana que fazem lembrar as diferentes camadas de
um bolo de noiva. Os habitantes do último andar são uma ruidosa e agitada família de macacos.
A epopeia Dragoman termina em Delhi, a mais populosa, barulhenta e menos interessante das cidades que visitámos. Equaciono apanhar um avião para Goa. Afinal, 12 dias de camião justificam umas férias na praia. E por 400 rupias ao dia é possível arranjar um hotel com vista para o mar de fazer inveja a muito resort na Republica Dominicana. Vou só ali perguntar à Helen se me quer fazer companhia. E aproveitar o facto do aparelho digestivo do australiano se ter incompatibilizado finalmente com a comida indiana, obrigando-o a ir ao WC de meia em meia hora!
Afinal, Deus existe!
Fotos: Zito Colaço
Texto: Nuno Calado Costa