sábado, 3 de julho de 2010

na Praia da Saúde, Costa de Caparica, Portugal.


O FUTURO NÃO É AGORA. MAS JÁ FOI.

Eu tinha uma pequena casa de madeira no topo de uma duna da Caparica. O Equador não atravessa estas terras, as da Costa, de quintas e hortas que se quedam na base da Arriba. Durante o dia, podíamos sentir-nos a subir, em direcção ao sol, mas as manhãs eram límpidas e tranquilas e as noites frias. A minha casa de madeira no topo de uma duna da Caparica foi feita num tempo que não tornará. Entre a minha casa de madeira no topo de uma duna da Caparica e o mar em frente havia um outro mar. De gente sorridente no verão e, quando a nortada levantava vagas, lixo que marés vivas devolvem, por vingança justa, à areia. Lixo que eu nunca fiz. Da minha casa de madeira no topo de uma duna da Caparica via um mundo que se perdeu tão irremediavelmente quanto ser homem a sério. Como os camponeses que, em anos de Invernos de agruras, se juntavam no areal esperando que um arrais lhes concedesse lugar na arte. Os sorrisos de ver comer a prole quando a sardinha, o carapau e a lula se agitava na rede que vinha, puxado à mão. Da minha casa de madeira no topo de uma duna na Caparica via passar Ti Palmira, a avó de um Capote que era fedelho descalço antes de ser estrela na TV, caminhando pela praia até a Fonte da Telha, Mina da Adiça, quase até à Lagoa de Albufeira mas não Alfarim, que é gente avessa ao norte e mais dados a sesimbrices, para trazer à luz futuros homens de cara sulcada de sal e sol. A "Aparadeira", chamava-lhe, que quer dizer parideira, que quer dizer parteira, puxava redes e cordões umbilicais, cortando-os com a tesoura que levava consigo a palmilhar léguas, no bolso do avental. Da minha casa de madeira no topo de uma duna da Caparica via passar, também em Janeiros de praguejar, homens e mulheres e crianças que se faziam a sul, debaixo de temporais que proibiam o mar, porque "A Lagoa de Albufeira dá todo o peixe que há na costa". De caminho, a Fonte da Telha e a tasca do Camões que morreu pobre de fiar. Uma sopa, um copo de vinho e um quarto de pão por poucos réis, não me lembro ao certo, às vezes em troca de algumas bolas de vidro que davam à costa, trazidas das artes de Sesimbra pelas marés. Só à noite, breu de não ver nem Espichel nem Bugio, lançavam o chichorro, arte de malha apertada que trazia sardinha, eiroz, sargo, sargueta, linguado e tudo o mais que desse aquele mar mais pequeno. Faziam-no, muitas vezes, debaixo dos tiros da Guarda Fiscal, porque os cães que são do povo mas do povo desdenham ao serviço de outros que os desdenham a eles foram, e serão, os mesmos de hoje. Da minha casa de madeira no topo de uma duna da Caparica vi, incontáveis vezes, as mulheres dos pescadores, as mais belas de Portugal, dizia o poeta Bulhão Pato, que vinha com a desculpa de comer amêijoas, largar arriba acima, arrobas de sardinha na canasta equilibrada à cabeça, para vender às portas dos Capuchos, Vila Nova e, às vezes, Lazarim, trocar peixe por farinha no moleiro, solitáris presença de um lugar que é hoje encruzilhada. Da minha casa de madeira no topo de uma duna da Caparica via o Bugio, Cascais. Estoril, Oeiras, o Monte da Lua. Agora não. Porque alguém achou que a minha casa de madeira no topo de uma duna da Caparica, que agora se chama Praia da Saúde, era uma casota de madeira sem condições, decrépita, que há muito perdera sentido, mesmo depois de anos a dar sentido a quem, do mar, a usava como ponto de orientação. Outros acharam mesmo que não passava de uma barraca a ser demolida. A minha e as outras. A minha casa de madeira no topo de uma duna da caparica contaria metade da minha vida. Mas parece que a minha vida interferia no gosto de outros. Agora, não da minha casa de madeira no topo de uma duna da caparica mas de um outro sítio qualquer, que não faz metade do sentido, consigo ver o Romeu Correia a arranhar o caixão.

Nuno Miguel Dias é jornalista de viagens. Andou por lugares inacreditavelmente belos. Cedo descobriu que a beleza só é subjectiva se não descrita de forma a que não o seja. Redigiu artigos para a VIP, Nova Gente, A Próxima Viagem e Blue Travel. E não consegue perceber como é que coisas que são encantatórias num destino exótico estão, em Portugal, numa altura em que a Sustentabilidade está na ordem do dia, condenadas ao desaparcimento.

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